A norte da capital, lá para os lados de Coimbra, vive uma mulher de estatura pequena mas de grande coragem e vontade. Com voz de baile fez de palco não só as festas tradicionais como a área da comunicação. Os seus olhos passam por (muitos) livros, cadernos de escrita e abrem de espanto perante o gosto de aprender algo novo com quem cruza o seu olhar. A chuva pode ser sua amiga, o natal aquece-lhe a alma e a ironia banhada em sarcasmo arrancam-lhe sorrisos largos. Hoje revela-nos como da (sua) sombra podemos fazer luz. Ela é a Carina e tu estás prestes a conhecê-la, nem que seja 1% da sua história.
Sinopse de como nos conhecemos
Na verdade a Carina foi a boa culpada de nos conhecermos porque foi quem nos encontrou primeiro. Tornou-se nossa associada para levar a missão do desenvolvimento humano mais além e não cruzou os braços por aí, mostrou proatividade e entrou na equipa de voluntariado enquanto Gestora de Conteúdo e Storytelling. A boa vontade e o trabalho de colaboração levam-nos um degrau mais acima no caminho que lá à frente sempre nos espera. Bem-vinda Carina!
Sobre a Carina
Comecemos pelo nome e idade de registo mas iremos para lá do que estão nos papéis. Ana Carina Janeiro Ferreira dispensou o 'Ana' assim que tomou consciência do que lhe tinha calhado no cartão de cidadão. Nasceu em 1992 no dia e mês que lhe valeram o signo de peixes e uma personalidade sem filtros.
« Sê todo em cada coisa. Põe quanto és no mínimo que fazes.» Fernando Pessoa
Foto tirada pela organização da Voz de Condeixa 2014.
Mas fora estes clichés introdutórios o que nos pode contar a própria?
"Há pouco tempo, em forma de comentário a uma iniciativa que tive no instagram, de falar sobre a depressão e o estigma que a envolve, alguém comentou que me via a escrever uma auto biografia e a falar de temas de espiritualidade. A pessoa em questão é minha vizinha e conhece-me desde que nasci, sabe muitas das minhas lutas. A verdade é que adoro escrever e nunca vi nisso uma grande dificuldade. Hoje, perante a tarefa de escrever sobre a minha vida e tudo o que ela me ensinou, não foi fácil.
Nas várias fases que passei pela vida, já tive muitas vezes que olhar para o meu passado e ver-me por inteiro em todo o meu percurso.
Fui, desde cedo, uma criança algo ambiciosa. Via a minha prima mais velha a aprender a ler e a escrever e também queria. Queria muito saber o que estava escrito nos livros. Não entendia por que motivo ela podia estar a aprender e eu não. A minha avó, “viu-se obrigada” a ensinar-me a escrever o meu nome, números e até a tabuada (imagine-se).
Até aos meus 16 anos, tive uma vida preenchida, uma adolescente feliz, rodeada de amigos, muito certa dos seus objetivos.
Aos 16, aquilo que sempre tive como certo na vida foi abalado. Confesso que senti que o meu mundo me estava a ser destruído, que me estavam a tirar o tapete debaixo dos pés.
Tinha a relação dos meus pais como um modelo a seguir. Nunca os tinha visto ou ouvido a discutir. Nunca. E, ali, apercebo-me que afinal aquele mundo não existia. Com 16 anos, não estamos preparados para os erros dos nossos pais, apenas para os ver como modelos. Como heróis. E não aceitamos menos que isso. E esta foi a primeira lição da minha vida. E foram precisos anos para eu conseguir entender e assimilar que mais do que pais, são duas pessoas normais, com uma relação, como também eu tive e que também falharam. E que podem falhar. Pessoas que podem e devem errar. Pessoas que não merecem ser julgadas por sentirem. Por tentarem ser felizes da melhor forma que sabem.
É necessário vermos para lá de nós mesmos. Sermos empáticos. Não julgarmos ninguém, nem mesmo quando isso mexe com a nossa estrutura.
Na base de um divórcio complicado, com um irmão mais novo que começou a assumir alguma rebeldia, no auge dos meus 18 anos, fui buscar resiliência onde não sabia sequer que era possível. Descobri, sobre mim, que sou uma problem solver. Que nos momentos de crise me foco em resolver tudo e nos objetivos. E eu tinha, naquele momento, a minha mãe mais em baixo, o meu irmão com problemas na escola e eu no 12º ano, com o objetivo de subir a média de 15 para 17 para poder entrar no ensino superior.
Dei uma grande lição a mim mesma neste período de tempo e que hoje vou buscar sempre que preciso. Eu já tinha problemas suficientes, então tudo o que dependesse de mim, eu faria por ser leve, por correr o melhor que me fosse possível.
Os meus objetivos foram cumpridos naquela altura.
"Um medo terrível de alturas. Mas seguimos, saltando de medo em medo de mãos dadas com a esperança."
Foto por Diana Cotas, Baloiço da Lousã
Naturalmente, mais tarde, e quando todos já estavam mais encaminhados, eu fui abaixo. Porque, na verdade, não me dei tempo de sentir. De viver. De resolver (re)sentimentos. Apenas de os calar e resolver o resto e cuidar dos outros. Com 19 anos, foi-me diagnosticada uma depressão.
Aos meus 20, a minha mãe teve de emigrar e entregar o meu irmão aos cuidados meu pai. Fico sozinha, a viver na casa que sempre foi de família. O início não foi fácil, confesso. Foi um primeiro ano duro. Solitário. Mas necessário. Aprendi muito sobre mim mesma e sobre a minha companhia – que é ótima!
E hoje? Hoje não prescindo de tirar tempo para mim, para estar sozinha. Preciso, aliás, tanto disso como de respirar. Estarmos sozinhos, não é sinónimo de solidão. E eu passo muito tempo sozinha, atualmente. Aprendermos a amar a nossa companhia, a desfrutar dos momentos para nós, é algo poderoso e que todos nós devíamos ter na vida. Só quando aprendemos a amar-nos por inteiro, podemos ser amor para os outros.
"A liberdade de aprender a estar sós, a amar-nos, é impagável."
Foto: Soraia Cardoso
Foram 8 anos a tomar medicação. De todos os tipos. Medicação que me engordou mais de 30 kg. Foram 8 anos em que não me senti eu. Em que sabia que não era eu. A certa altura, convenci-me, inclusive, que tinha realmente mudado a minha personalidade e que aquela agora era eu, que era assim e que já não voltaria ao que era antes. Resignei-me como nunca antes. Tomava xanax para dormir e não dormia. Dormia muito pouco, aliás. Andei perdida de tudo. Mas, essencialmente, de mim.
É difícil explicar o quanto esta doença se apodera de nós. E contudo, tão importante falar dela. Hoje, quase me parece noutra vida e é tão surreal ter passado por tudo isto. Mas passei. E sofri. E fiz sofrer os meus. Lembro-me de um dia estar tão cansada, mas tão cansada que só queria dormir. Queria dormir uma semana inteira. E tomei comprimidos. Depois disso, acordei com os bombeiros e o INEM. Levei uma lavagem ao estômago.
A maioria dos meus amigos nem deverá saber disto mas são demasiadas as pessoas que recentemente vejo serem envolvidas neste bicho papão que é a depressão e pelo estigma, pensam que estão sozinhas e que são as únicas a passar por isto e a fazer certas coisas. Não são. E eu não tenho vergonha de falar sobre isto, porque isto faz parte de mim. Foi um período difícil, sim. Mas faz de mim quem sou hoje, sem dúvida.
Há um enorme estigma em torno de tudo isto e acabamos muitas vezes por ocultar, e não partilhar experiências e ajudar quem podemos e precisa, por medo. Porque um futuro patrão pode ver e colocar logo o rótulo de pessoa depressiva. Porque uma pessoa que tem uma depressão uma vez é como se fosse depressiva a vida inteira. Há um bom tempo que deixei de me preocupar com isto. Porque quero muito mais ajudar quem está num mau momento do que me preocupa quem me julga.
Venci a depressão quando me virei, verdadeiramente para dentro. Quando me olhei e me vi. Escrevi-me cartas. Cartas ao meu eu do passado. Cartas a pedir desculpa à menina que fui e a todos os erros que cometi para comigo mesma e que me fizeram mal. Cartas a pedir desculpa pelos erros que fiz aos outros e que tinha de aprender a desculpar-me e a deixar ir.
Comecei a meditar e a fazer exercício físico. Voltei a ser eu. Genuinamente. Deixei todo e qualquer tipo de medicação. E aprendi: perdoa-te. Não sejas tão exigente contigo mesma.
"Tu nunca estás sozinho/a. E quando tudo estiver turvo, respira fundo e confia: a vida sabe o que faz."
Nos entretantos, o meu avô, que muito me ciou como um pai, ficou doente, com cancro. Esse bichinho que o apanhou era tão manhoso que de coimbra tivemos de ir para o IPO do Porto, de tão raro. Fomos tarde demais. Ele já lhe andava a comer as entranhas há demasiado tempo. Foi duro porque fui sempre eu a única pessoa que o acompanhou nas consultas e fui eu também quem teve de lhe explicar que não havia nada a fazer. Não sei até hoje, se ele me perdoou a minha resignação àquele diagnostico mas julgo que sim. Esteve em consciência até ao fim e viu-me a desdobrar-me para poder estar.
Nunca sabemos quando é que os nossos vão deixar de estar. E aquilo que me permite ter paz e hoje ir falando com ele de vez em quando, é eu saber que fiz tudo por quem um dia me deu tudo. Cuidar de quem cuidou de nós.
No fim de 2019, as voltas bonitas da vida (como gosto sempre de dizer), deram-me um bom emprego, estável, trouxeram-me um companheiro de vida que tem um dos corações mais bonitos que conheço e tudo parece calmo quando chega uma pandemia. E com ela, por estranho que pareça, chega, para mim, um momento de muita paz interior. Talvez porque para não me render ao caos e ao medo, me voltei para o amor e para a solidariedade.
"Fé. Na vida e nas pessoas. Sempre."
Foto: Daniel Victorino
Ajudei localmente algumas pessoas, como pude, contribuindo. E num momento que continua a ser de instabilidade para todos, encontrando-me submersa num sentimento de frustração, eu despedi-me. Respirei fundo e escolhi o amor ao invés do medo.
Nunca trabalhei e pouco tentei entrar na minha área por falta de confiança em mim. Um desorientador de estágio, quando me preparava para fazer o 2ºano e concluir Mestrado, convenceu-me realmente que eu não tinha qualquer valor. E pior, eu realmente permiti.
Não concluí o Mestrado. Tenho a Especialização em Comunicação de Marketing. Mas hoje estou decidida a lutar por mim e a não deixar que alguém, seja quem for, se sinta no direito de dizer o quanto valho. E menos ainda a convencer-me disso.
"Os sonhos são das poucas coisas que são inteiramente nossas. Permitir que alguém nos destrua um sonho ou nos faça desistir dele, é permitir que nos destruam um pouco da nossa essência. Nunca dês esse poder a ninguém."
Foto tirada pelo grupo de apoio do Gabinete de Comunicação e Relações Públicas da ESEC
Hoje estou a investir em mim. Porque acredito muito em mim. Todos os dias, leio, pesquiso, tento cimentar conhecimentos, por mim. Hoje sei que valho muito a pena e só quero trabalhar onde compreendam isso. Hoje não me deixo intimidar em entrevistas e não fico nervosa. Mostro o que sou, genuinamente. A minha vontade e dedicação que é muito maior que eu.
Sei também que quando acreditamos em nós, o mundo acredita connosco. E a fé anda de mãos dadas comigo."
Mais sobre a Carina?
A falta de empatia ferve-lhe o sangue porque detesta ver o ser humano a ser "tão pouco humano" para os outros. Tanto quanto lhe faz espécie ver o fraco empoderamento entre mulheres quando há mais tacões pisados do que saltos para melhores lugares em comum.
A vida não é uma competição, mas às vezes bem que nos sentimos a perder o fôlego. Obrigada Carina pela honesta e emocionante partilha.
Segue as suas partilhas na área da saúde mental e de vida no Instagram aqui.
Conecta com ela ao nível profissional via LinkedIn aqui.
Escuta pela voz da própria uma versão ainda mais íntima da sua história:
Lições de vida
-da Carina para nós-
1. Vê para além de ti mesmo. Sê empático.
O facto de me centrar tanto na minha dor, fez-me julgar os meus e afundar-me numa depressão muito por pena de mim mesma.
Não nos cabe julgar seja quem for. Nada nos dá o direito de atirar pedras nem mesmo quando isso mexe com a nossa estrutura. Em momentos de dor, é difícil colocarmo-nos no lugar do outro e tentar entender certas atitudes. Contudo, tenta! Sê empático.
2. Estar só não é sinónimo de solidão
Foi num momento em que a vida me obrigou a estar sozinha, levando para longe quem sempre esteve perto, que me fez entender o quanto isso é valioso.
Quando estamos sós podemos olhar para nós. Podemos descobrir-nos e aprendemos a usufruir da nossa companhia e isso vale ouro! Mais do que isso, é essencial para aprendermos a amarmo-nos. E acredita, só quando te amares verdadeiramente conseguirás amar o próximo.
3. Ter uma depressão não significa que iremos ser depressivos a vida inteira.
Tive uma depressão durante 8 anos. Depois de acompanhamento, medicação e, acima de tudo, muita luta interna, atrevo-me a dizer que a venci.
Hoje não tenho depressão e não sou, com certeza, uma pessoa depressiva.
Deixem, por favor, essas ideias pré-concebidas que quem teve uma depressão, ao mínimo problema, se irá abaixo. Não somos mais fracos porque tivemos uma depressão, muito pelo contrário!
4. Cuida de quem cuidou de ti.
Felizmente, perdi poucas pessoas mas 2 delas foram fundamentais na pessoa que sou hoje. Aquilo que me permite ter alguma paz de espírito e lembrar-me delas com um sorriso, é o facto de saber que fiz tudo o que pude enquanto elas cá estavam.
5. Escolhe o amor, não deixes o medo vencer!
Durante muito tempo não segui os meus sonhos por medo: medo de não ser capaz; medo de falhar; medo do insucesso; medo do julgamento que poderia advir de um possível insucesso - e toda uma bola de neve que se forma.
Resignei-me, não fui atrás. Tudo isto porque permiti que me convencessem que não tinha valor e que tudo o que fazia estava errado. E pensar assim foi o mote ideal para o meu perfeccionismo não me deixar sair da minha zona de conforto.
Deixar o medo dominar-me conduziu-me a uma frustração imensa e uma coisa eu sabia: não estou aqui para ser infeliz.
Despedir-me numa época tão instável pode soar a loucura mas foi um tremendo ato de amor para comigo mesma.
Hoje, sigo firme. Ainda tenho medo de falhar mas aprendi que faz parte e todos o fazemos. Só podemos ter sucesso se falharmos primeiro.
Sentiste empatia por esta história? A Carina está disponível para receber e responder a todas as questões, curiosidades e/ou sugestões.
Envia-nos um email para geral@soloadventures.pt e nós fazemos chegar-lhe a mensagem.
Boas Aventuras,
Joana Feliciano & Carina Ferreira
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